Algumas vezes jogamos para passar o tempo, outras vezes jogamos para nos emocionar, outras vezes, jogamos para nos divertir ou competir com os amigos. Mas algumas vezes jogamos para viajar… para outro mundo, outra aventura, outra realidade. Tunic é a definição de viagem interdimensional (no sentido poético e metalinguístico), e um professor com doutorado em game design e mestrado em “Souls-like”.
Game design (apresentação, estilo e mecânicas):
Desenvolvido em sua maior parte por Andrew Shouldice, Tunic conta com uma amálgama de características básicas e complexas em sua forma de progressão e interação com o cenário, o combate e a história. Sua base fundamental consiste em três estatísticas primárias: 1) uma barra de saúde, que representa a vida do personagem e a quantidade de “dano” que ele pode receber até a morte; 2) uma barra de estamina, que consiste na representação da quantidade de “esquivas” e “defesas” que o personagem pode fazer até a exaustão; e 3) uma barra de magia, que representa a quantidade de feitiços que o personagem pode utilizar até que sua magia esgote-se.
O jogo oferece cada um destes elementos de forma gradual, aliando sua apresentação ao recebimento de habilidades e equipamentos como: uma espada, um escudo, um cajado, e por aí vai. Além disso, possui diversos elementos de metroidvania (ou seja, o jogo apresenta locais no início que somente poderão ser acessados quando o personagem ganhar um equipamento ou habilidade mais tarde, incentivando o senso de exploração e a qualidade do level design), combinando mecânicas “Souls-like”, como a dificuldade, o método de pontos de controle que fazem ressurgir os inimigos no local, entre alguns outros; tudo isso com uma pitada dos clássicos jogos de Zelda, já que sua perspectiva é isométrica.
E sua última característica marcante são seus quebra-cabeças, que usam e abusam de maneiras criativas e geniais de apresentar um problema complexo com soluções simples (na maior parte das vezes consistindo na utilização das setas de seu controle), resultando em um reaproveitamento e dotando o jogo de um ritmo cadenciado que permite aumentar o valor da experiência e exploração, tornando o game extremamente divertido de se jogar até quando morremos algumas dezenas de vezes, e acredite, isso é vital para manter o jogador engajado, porque a morte é frequente.
Level design (níveis, inimigos, direção de arte e trilha sonora):
Os níveis do jogo contam com um charme encantador, e todos são acessíveis e de fácil compreensão geográfica, mas caso isso não baste para o jogador mais casual, o game oferece um manual fragmentado e que, ao longo da jogatina, vai sendo completado e oferecendo diversas pistas e informações para o jogador, como se o próprio personagem da história estivesse interagindo de modo metalinguístico com o game.
Os inimigos são agradáveis de se enfrentar, e o cenário interage muitas das vezes como uma lâmina de dois gumes, pois podem ajudar e prejudicar o jogador da mesma forma (com explosões de barris, quedas em abismos ou barreiras naturais). Os chefes são irados e com uma dose de dificuldade que rende algumas horinhas de tensão (com exceção do chefe final, pois esse aí faz o Artorias de Dark Souls no NG++ parecer um passeio no parque) e todos combinam e denotam contraste na forma como você joga.
A direção de arte é digna de nota, pois mistura modelagens plásticas e fofas com elementos realistas. Por exemplo, a água do cenário é simplesmente um azul e branco artisticamente bem desenhado, porém, o reflexo da água na parede é hiper-realista, assim como as nuvens no céu (quando temos a oportunidade de vê-las) são simples e fofas, mas o reflexo da iluminação nos níveis inferiores são hiper-realistas. Essa combinação deixa o jogo extremamente agradável aos olhos e torna-se um fator cativante à medida que progredimos de cenário em cenário.
No momento em que redigo esta análise, estou ouvindo o álbum inteiro de Janice Kwan, compositor da trilha sonora de Tunic, que resgata elementos clássicos da fantasia, como “raises” e mixagens fluídas com aqueles efeitos “mágicos” e de piano, mas que acrescenta temas eletrônicos e batidas que lembram um “house”. Tudo isso resulta numa experiência que une a calmaria e a empolgação de forma orgânica.
Questline (enredo, construção de mundo e narrativa):
A história do jogo é direta em sua apresentação, mas indireta em sua interpretação. Tratando-se de uma fábula, acordamos em uma praia controlando uma pequena raposa, sem saber ao certo onde estamos e o que fazer. À medida que progredimos e coletamos equipamentos, liberamos monumentos que homenageiam um herói falecido, além de encontrarmos um espaço interdimensional em que uma raposa maioral parece pedir nossa ajuda para se libertar de uma prisão.
Para libertá-la, precisamos coletar três runas, protegidas por três chefes personagens em diferentes locais do jogo, e enquanto avançamos, tentamos entender o que o cenário nos conta, pois textualmente Tunic dá-nos muito pouco, ou melhor, não nos dá, já que a língua utilizada é inédita.
É lógico que isso seria utilizado como um elemento de game design e o próprio ato de decifrar o idioma contribui para a resolução de um quebra-cabeça, mas de resto, tudo persiste em um limiar minimamente interessante e enigmático, mantendo a narrativa sempre em um plano secundário. O jogo é bem-sucedido em criar um mistério intrigante, mas falha em cativar ou incentivar o jogador a procurar uma melhor resolução (o game conta com múltiplos finais).
Gameplay (acessibilidade, experiência pessoal e notas precisas):
E chegamos na parte mais pessoal da análise, começando pela acessibilidade, e já adianto: o jogo é fofo, o sofrimento que a dificuldade dele causa, não. E o jogo é desafiador, e isto pode ser tanto positivo quanto negativo a depender de quem analisa. Como eu sou um dos fiéis seguidores e admiradores deste gênero “Souls-like”, posso dizer com segurança que o saldo fora positivo, ainda que o último chefe do jogo tenha sido excessivamente punitivo, o que, com certeza, deve contribuir para o abandono de muitos jogadores casuais.
E vale salientar: este não é um jogo para o público casual, apesar de ser uma excelente entrada para quem quer aventurar-se no gênero e espera uma dificuldade acima da média. Tunic é um jogo que atiça as fagulhas de uma diversão imemorial, que combina o antigo e o novo inteligentemente e tempera a experiência com enigmas criativos, uma história interessante, e uma jogabilidade desafiadora.
[Tunic está disponível como exclusivo temporário para Xbox Series X|S, Xbox One e PC, também disponível no Xbox Game Pass]