Subindo o nível do RPG na indústria:
Estamos entrando em uma era no mundo do entretenimento interativo em que videogames estão sendo tratados como pontos vitais no segmento de várias empresas, e um enorme e ascendente mercado de acionistas está cada vez mais de olho no mundo dos jogos, que já é maior que a indústria do cinema e da música combinados. É lógico que este fenômeno alavancou diversos setores no mercado consumidor, e o que eram gêneros de nicho hoje fazem parte central do cenário mainstream.
Diversos estúdios e publishers, a partir dos anos dois mil, impulsionaram o mercado de jogos para outros patamares e conquistaram uma geração inteira de fiéis jogadores. E se Halo, Call of Duty e Doom são sinônimos de FPS (jogos de tiro em primeira pessoa), e se Forza, Need for Speed e Gran Turismo são sinônimos de jogos de corrida, então The Elder Scrolls, Pillars of Eternity e Fallout são sinônimos de RPG, e por trás deles, há dois estúdios lendários: Bethesda Game Studios e Obsidian Entertainment.
A primeira, Bethesda, foi uma das responsáveis por tornar o RPG ocidental divertido, pois segundo uma grande parcela da comunidade de jogadores dos anos noventa, não era nem um pouco divertido experimentar essas obras, visto que o Japão permanecia dominante com franquias igualmente lendárias e que persistem até os dias de hoje, como Final Fantasy, da Square Enix, e Dragon Quest, da Sega.
Tudo isso mudou quando o mundo conheceu a franquia The Elder Scrolls, já popular para o público dos computadores, com títulos da série como “Arena” e “Daggerfall”. Nos anos dois mil, vendo o sucesso avassalador de empresas como a Sony e Nintendo, a Microsoft decidira adentrar no mercado de games com seu Xbox Original, e um de seus amados exclusivos foi a estreia da Bethesda nos consoles, com The Elder Scrolls III: Morrowind.
Como se tamanho sucesso não bastasse, com o lançamento do Xbox 360, a Microsoft fortaleceu essa parceria com aquele que definiu a excelência do estúdio norte-americano liderado por Todd Howard, com The Elder Scrolls IV: Oblivion. Com um reconhecimento avassalador por parte da crítica e do público geral, a Bethesda finalmente havia alcançado o trono quando tratava-se de RPG’s (e muitos nem aguardavam as suas sequências aclamadíssimas, como Fallout 3 e The Elder Scrolls V: Skyrim), e foi a primeira vez que estúdios japoneses começaram a olhar a forma de fazer-se RPG’s de ação com outros olhos.
Uma obsidiana no sapato da Bethesda:
Mas um estúdio como esse não poderia estar sozinho em um mercado tão promissor, e dentre um mundo cheio de colossos, mais um conquistava a atenção e o amor do público com participação em títulos como Star Wars: Knight’s of The Old Republic, Fallout, Wasteland e Pillars of Eternity, e esta era a Obsidian Entertainment. Fundada em 2003 (apesar de já ter alguns trabalhos anteriores) e liderada até hoje por Feargus Urquhart, o estúdio foi dominando e de pouco em pouco conquistando os mais apaixonados pelo gênero.
Em 2010, surgindo do nada com uma pareceria inusitada e conturbada com a Bethesda Softworks (publisher subsidiária da Zenimax Media, que detém as franquias e estúdios da Bethesda), a Obsidian lançou o que para muitos (inclusive para mim) é o melhor RPG da história do mundo dos videogames: Fallout: New Vegas, o que gerou uma pressão maior ainda após o sucesso de “Skyrim” e a exigência dos fãs em fazer o estúdio liderado por Todd Howard dar uma sequência digna.
A pressão entre as filosofias de cada empresa eclodiu nos meses posteriores ao lançamento de Fallout 4, game que, apesar de elogiado pela crítica e jogadores, recebeu diversas reclamações no modo como a Bethesda escrevia suas quests, ou seja, as missões do jogo, que comumente dão ao jogador várias escolhas de encaminhamento e diferentes finais, mas que no caso dos games do estúdio citado, também conquistara diversas críticas negativas, visto que na maior parte das vezes todas levavam a um mesmo desfecho, diferentemente do estúdio que “concorria” com eles nestes termos.
Após o lançamento desastroso de Fallout 76, a comunidade de jogadores de RPG voltou-se a Obsidian com seus sucessos recorrentes, como Pillars of Eternity 2: Deadfire e sua mais nova propriedade intelectual, The Outer Worlds. A disputa ficara tão acirrada que até mesmo na época do lançamento do game, a utilização de slogans como “Dos criadores de Fallout” e “Dos desenvolvedores de Fallout: New Vegas” repercutiu, farpando o estúdio rival e conquistando mais jogadores para o seu lado no que diz respeito à condução da narrativa.
E em meio à gigantesca comunidade e a memes populares, a pergunta finalmente havia sido levantada: por que muitos tinham a Obsidian como pináculo da narrativa, sendo que as franquias mais icônicas eram detidas por uma empresa mais experiente e há mais tempo no mercado?
O livre arbítrio no mundo dos jogos:
Uma das definições de livre-arbítrio é a liberdade da vontade de escolher autonomamente ações que dizem respeito ao indivíduo, ou seja, um ser humano. Mas estamos na primeira geração de humanos que podem experimentar isso de um modo virtual, quero dizer, podemos tomar decisões virtuais e ver suas consequências virtuais tomando formas em um cenário mutável e dinâmico, que replica eletronicamente nossos sentidos e até sentidos inexistentes em um determinado programa o qual damos o nome carinhoso de “jogo”. É estranho e sensacional pensar no poder dos videogames quando paramos para pensar nesses aspectos, não é verdade?
É lógico que não podemos ter cem por cento de liberdade dentro de um jogo por implicações técnicas, mas podemos tentar fornecer uma experiência aproximada disso. E é aí que entra o RPG! O RPG é uma sigla para “Role Playing Game”, criado como um game design de Gary Gygax para um jogo de tabuleiro chamado Dungeons & Dragons, lançado em 1971, onde jogadores podiam interagir com um mundo fictício e um manual de regras e agir livremente baseados em informações fornecidas por um narrador (um contador de histórias, como aqueles tiozinhos de boteco na esquina da sua casa).
O gênero explodiu e não demorou para que os jogos de computadores tentassem refletir isso de alguma forma, e hoje em dia, RPG’s são sinônimos de jogos eletrônicos para grande parte do público casual, o que deturpa muitos conceitos clássicos do gênero e permitem-nos fazer um triste prognóstico da saturação deste setor no mercado. Como a tecnologia ainda era escassa nos anos noventa e começo dos anos dois mil, era comum existirem experiências voltadas para somente um jogador e com foco nas decisões narrativas, ou seja, se antes existia uma pessoa responsável por contar a história pela qual seu bonequinho interagiria com o cenário, agora quem faria isso seria um programa, mas a ênfase sempre permaneceria na narrativa, e o entretenimento estava na liberdade de decisões que permitiam experimentar diferentes resoluções para uma mesma história.
Contanto, no cenário atual de jogos de RPG, isso mudou. A ênfase na mecânica prevaleceu, e o RPG tornou-se um mero fator para determinar uma cadeia de evolução de habilidades e a liberdade de exploração em um mundo aberto, sem qualquer compromisso em dar liberdade para o jogador escolher diferentes resoluções para uma aventura específica, e advinha só quem é rainha em fazer isso? Nossa querida Bethesda! Vale ressaltar que não há problema nenhum nisso, e muitos jogadores não viam problemas excessivos nestes aspectos, visto que era esperado uma evolução natural no modo de escrever as narrativas.
Mas, pelo menos para a Bethesda, esse momento não chegou. O que fez isso eclodir era que um estúdio como a Obsidian, notoriamente menor, conseguia entregar uma experiência não-linear e que de fato fornecia ao jogador pelo menos três opções e resoluções para uma quest, enquanto a outra dava essas mesmas opções, mas faltava com as resoluções, fazendo as escolhas do personagem parecerem irrelevantes. Soma-se isso ao fato de que os jogos de uma possuíam períodos de produção e orçamento muito maiores do que a outra, mas que possuíam muito mais bugs e problemas, e assim tínhamos oficialmente uma pedra, ou melhor, uma obsidiana no sapato da Bethesda, ainda mais se levarmos em consideração que Fallout 4 teve um período de produção de quase cinco anos, e seu antecessor aclamado e melhor em aspectos narrativos, Fallout: New Vegas, foi produzido em um período de dois anos.
A chegada do juiz e o futuro desse embate:
Ninguém achava que as empresas poderiam provar-se (não que elas tivessem ou que se odiassem literalmente, visto que a equipe constituinte dos estúdios era sempre variada e muitos já participaram das duas equipes sem qualquer confusão ou rancor) ou dar o seu melhor em projetos já que as duas, cada uma em sua escala, estavam enfrentando problemas financeiros e de reputação (este último apenas diz respeito à Bethesda). Então, surgindo de uma névoa com a poderosíssima magia do cartão de crédito, a Microsoft adquiriu não somente a Obsidian Entertainment, como também toda a Zenimax Media, que detém as franquias do estúdio e a própria Bethesda.
Os rastros dessa bomba mitológica permanecem até os dias de hoje, mas o mais interessante disso tudo é que ela ainda não explodiu. Agora, com recursos exponencialmente maiores, ambas as empresas têm dado tudo de si para seus próximos lançamentos; ambos novas propriedades intelectuais e ambiciosos. A Bethesda promete um “Skyrim no espaço” com seu Starfield, que será lançado exclusivamente este ano para PC e consoles Xbox Series X|S, com recursos e atualizações severas no modo de conduzir o desenvolvimento de seus jogos e com uma grande atualização no motor gráfico, priorizando a qualidade após as lições de Fallout 76.
Enquanto isso, a Obsidian promete um forte concorrente à franquia The Elder Scrolls com seu Avowed, baseado no querido universo de Pillars of Eternity, e mirando ainda mais longe, The Outer Worlds 2 promete ser ainda mais ambicioso na sua exploração de ambientes e em termos narrativos (ambos que também serão lançados exclusivamente para PC e consoles Xbox Series X|S).
Mas o que o futuro desse embate pode gerar para nós, jogadores? A resposta varia, mas permanece sólida em um aspecto: bons jogos. O primeiro round já aconteceu, e para muitos a vitória pendeu para a Obsidian, mas ainda há o segundo round com Starfield, e o que ele poderá dizer sobre essa luta? Bom, resta-nos apenas aguardar para termos uma prova prática dessa evolução, mas agora, se me derem licença, vou ali zerar Fallout: New Vegas de novo…