Quando penso em Napoleão, duas coisas vêm à minha mente. A primeira e mais óbvia é a própria figura de Napoleão Bonaparte, uma das personalidades mais complexas e fascinantes da história, responsável por feitos e eventos que moldaram significativamente o nosso mundo ocidental. A segunda coisa que me vem à cabeça é o filme que Stanley Kubrick nunca conseguiu concretizar e que, até hoje, é objeto de debates e especulações. Afinal, tínhamos o maior diretor da história do cinema americano à frente de um projeto para o qual dedicou anos de pesquisa e esforço sobre uma das figuras mais interessantes da história. Mesmo que o filme nunca tenha sido feito, o legado do projeto de Napoleão de Kubrick permanece. As anotações detalhadas, pesquisas extensivas e a visão única do diretor foram preservadas e se tornaram uma parte fascinante da história do cinema, tornando-se até palco de um livro.
Só para não mencionar muito Kubrick, acho que existem cenários mais apropriados para isso, o diretor costumava dizer que nenhuma das adaptações cinematográficas de Napoleão foi capaz de retratar o que de fato importava na autobiografia do personagem histórico, que eram suas nuances e complexidade psicológica. Provavelmente, ele manteria esses mesmos comentários se estivesse vivo hoje e acabasse de sair de uma sessão de Napoleão de Ridley Scott.
Ao fim dos créditos do filme de Ridley Scott, a pergunta que permanece é: o que o diretor queria explorar com o filme? Sua intenção era retratar Napoleão com toques de deboche e desconstruir sua figura mítica? Mas isso encontra uma contradição, já que as batalhas em tela que retratam seus grandes feitos colocam o personagem até mesmo no meio da ação direta como um grande guerreiro muito mais do que um estrategista. Ou será que sua intenção era retratar o complexo romance entre Napoleão e Josefina? Afinal, boa parte do filme se debruça nas cartas compartilhadas entre o casal. Só que eu acho que não, não era essa a intenção, porque o roteiro de David Scarpa e a direção do próprio Scott falham miseravelmente em construir esse romance e tornar crível a paixão intensa que Napoleão tanto verbaliza. Tudo o que o filme almeja explorar desse romance são cenas de sexo bizarras. Por último, será que a intenção de Scott estava na espetacularização que as famosas batalhas do personagem título poderiam render? Apesar da escala impressionar, também acho que essa não era a intenção, porque as batalhas aqui são completamente sabotadas pela montagem grosseira, a disposição geográfica bizarra e confusa desses exércitos em tela, a ausência das cores e cenas repletas de fumaça. São sequências pouco memoráveis e pouco visualmente claras também.
Com tantas incertezas sobre uma experiência como essa, a única certeza é que Ridley Scott e seu roteirista já mencionado não encontraram um foco para a história. E é o tipo de coisa que se reflete até mesmo na atuação de Joaquin Phoenix, que parece perdido no personagem que construiu, seu trabalho não possui um só traço memorável, tornando suas únicas grandes passagens cenas isoladas onde ele está parado com seu figurino e refletindo em silêncio. De resto, sobra um personagem vazio, distante, e que pouco compreendemos. Ele verbaliza muita paixão por seu país, por sua esposa, assim como verbaliza o ego que rende suas derrotas, mas a atuação de Phoenix não entrega nada disso. Seu personagem não poderia soar mais frio e vazio. Vanessa Kirby também é outra prejudicada pela construção de sua personagem, cuja única intenção do texto é retratá-la como uma mulher sedutora e, aparentemente, feroz por poder. Sobra muito pouco de humanidade ou outras nuances para a atriz explorar e entregar em tela, o que soa incoerente com a relação de ambos os personagens.
Essa falta de foco também pode ser sentida nos aspectos mais técnicos da produção. O filme opta por uma dessaturação à la Zack Snyder, com cores frias sobressaindo, o que torna a experiência bastante desinteressante do ponto de vista estético e, por sua vez, cria problemas nas grandes sequências de batalhas, fazendo todas elas soarem desinteressantes. É uma decisão de frieza visual que funciona apenas em dois momentos. O primeiro na sequência da batalha de Austerlitz, talvez a mais feliz do longa, porque evidencia o cenário gelado e o torna um ambiente opressivo e ausente de esperanças para o exército inimigo. O segundo momento vem no incêndio de Moscou, onde as cores mais escuras encontram um belíssimo contraste com as brasas ardentes, e talvez essa seja a passagem mais memorável e bela do longa. De resto, o uso da fotografia e das cores acaba apenas por tornar os momentos mais “humanizados” de Napoleão algo desinteressante, e como já mencionado, os conflitos armados se tornam pouco entendíveis e claros, e por aí vai. É uma escolha que prejudica bastante o andamento da história.
E quanto ao recorte histórico? Bom, Ridley Scott já deixou bem claro em entrevistas recentes que não se importa muito com isso, então, Napoleão bombardeia pirâmides à vontade, faz armadilhas no gelo, não faz uso algum de sua famosa estratégia de batalha enquadrada, estratégia essa que aparece somente no final quando ele é derrotado pela própria que por sua vez os ingleses se inspiraram, e entre outras, mas essas liberdades talvez até pudessem funcionar se qualquer passagem histórica do filme tivesse o mínimo de aprofundamento. Décadas inteiras, eventos importantíssimos, contextos de conflitos e mudanças políticas na França são condensadas de forma tão abrupta e apressada que se torna confuso e impossível de se conectar a qualquer um desses eventos. É um trabalho porco de condensação que, novamente, não encontra seu foco na história e ainda por cima é prejudicado pela montagem. Sem falar de elementos que a narrativa estabelece como a mãe ou irmão do Napoleão que são mencionados e desaparecem da história, o próprio filho de Napoleão e os filhos de Josefina que simplesmente desaparecem e reaparecem em um momento tardio. Ora, se o diretor não se importa tanto assim com a fidelidade histórica, por que a necessidade da checklist?
Para ser justo, parece que o filme ganhará uma versão de quatro horas direto para o streaming da Apple. Talvez essa versão até possa melhorar alguns aspectos do recorte histórico do filme, mas dificilmente vai consertar essa falta de foco que sabota algo intrínseco à narrativa.
Comecei o texto tratando sobre o que me vem à mente quando penso no personagem título, e acredito que haverá uma terceira coisa para se lembrar a partir de agora: o desperdício de potencial deixado por esse filme. É péssimo quando uma experiência cinematográfica não tem nada de interessante a dizer, mas acho que é ainda pior quando um diretor de renome não sabe o que fazer com um personagem tão intrigante e complexo.
Definitivamente, não são apenas os franceses que não vão gostar desse filme, Ridley Scott.
Crítica/Review
Napoleão - Crítica (Sem Spoiler)
A falta de um foco compromete "Napoleão" de Ridley Scott. Com tantas intenções, o filme acaba se tornando vago. Não se destaca como um bom filme e não se destaca como um bom épico histórico. É uma experiência desinteressante e vazia.
PRÓS
- O filme mostra a trajetória de Napoleão Bonaparte, um dos líderes mais influentes e controversos da história, desde a sua ascensão como general até a sua queda como imperador.
- O filme explora a relação complexa e apaixonada entre Napoleão e Josephine, sua primeira esposa, que foi uma das poucas pessoas capazes de compreendê-lo e desafiá-lo.
- O filme tem uma produção impecável, com cenários deslumbrantes, figurinos detalhados, fotografia estilizada e trilha sonora envolvente, que criam uma atmosfera épica e realista.
- O filme tem uma atuação brilhante de Joaquin Phoenix, que interpreta Napoleão com intensidade, carisma e nuances, mostrando as suas ambições, conflitos e fragilidades.
- O filme tem cenas de batalha impressionantes, que retratam as conquistas e derrotas de Napoleão, com uma direção precisa e dinâmica de Ridley Scott.
CONTRAS
- O filme pode ser considerado longo e arrastado, com duas horas e meia de duração, que podem cansar alguns espectadores que esperam mais agilidade e ritmo.
- O filme pode ser criticado por tomar algumas liberdades históricas, que alteram ou inventam alguns fatos da vida de Napoleão, como a sua presença na execução de Maria Antonieta ou o seu disparo contra as pirâmides do Egito.
- O filme pode ser acusado de romantizar ou glorificar a figura de Napoleão, que foi um tirano sanguinário e megalomaníaco, que causou milhões de mortes e sofrimentos em nome do seu poder e da sua glória.
- O filme pode ser visto como uma obra convencional e previsível, que não traz nada de novo ou original sobre o personagem ou o período histórico, seguindo uma fórmula já consagrada pelo cinema épico.