Ainda nos créditos iniciais, uma das coisas mais atraentes de “Os Rejeitados” (2023) surge em tela: o logo da Universal Pictures parece vir diretamente dos anos 70 e, quando as primeiras imagens surgem, temos a certeza de que esse filme realmente parece saído diretamente daquela década. Um granulado é adicionado aos principais planos do filme e até mesmo “arranhões” tomam a tela vez ou outra, imprimindo uma impressão de que o filme foi gravado e lançado em película, além de algumas tomadas e enquadramentos que ajudam a criar essa ilusão. Embora essas escolhas criativas sejam parte da assinatura do diretor Alexander Payne, elas servem para ambientar o filme no Natal de 1970 de forma um pouco mais rica e criativa. Afinal, se o filme se passa nessa época, por que não fazê-lo parecer como um filme de fato feito nessa época?
A história nos ambienta em um internato na Nova Inglaterra que está coberto por neve e possui uma melancolia única no ar que, por vezes, soa até acolhedora. Acompanhamos um professor mal-humorado, Paul (interpretado por Paul Giamatti), forçado a permanecer no campus para cuidar do grupo de alunos que não tem para onde ir durante as férias de Natal. Ele acaba criando um vínculo improvável com um deles – um encrenqueiro magoado e muito inteligente, Angus (Dominic Sessa) – e com a cozinheira-chefe da escola Mary (Da’Vine Joy Randolph), que acaba de perder um filho no Vietnã.
É uma premissa bastante simples, principalmente com o toque natalino adicionado a ela, mas até aí, a literatura de Ernest Hemingway também é simples na forma que é escrita e em sua premissa e mesmo assim consegue entregar uma profundidade ímpar em seus personagens e seu tema. “Os Rejeitados”, assim como Hemingway, está muito acima de sua aparente simplicidade. É interessante a forma como a história usa a comédia para acentuar, ao invés de suavizar, a amargura que seus personagens vivem e o antagonismo que criam entre si, como o de Paul com seu aluno Angus. O filme poderia facilmente se encaixar em uma representação visual ambulante do que significa a palavra tragicômico, mais do que qualquer excelente comédia inglesa. O humor extraído das situações mais duras da vida é o que torna essa ambientação tão irresistível, unidas ao vazio dos espaços enormes do colégio e a frieza da neve que toma conta do longa. É interessante notar também como o filme desde o início estabelece sua Arma de Chekhov, para quem não está familiarizado com o termo. A “arma de Chekhov” é um princípio na escrita dramática que afirma que elementos introduzidos em uma narrativa devem ter um propósito ou relevância posterior. Se uma arma é introduzida em cena, ela deve ser usada posteriormente; no caso de “Os Rejeitados“, Angus, apesar de rebelde e amargurado, já é mostrado nos primeiros momentos do filme como um jovem que tira notas mais altas que seus colegas. Quanto a Paul, o professor cercado de amargura com seus alunos e colegas de trabalho, demonstra empatia por Mary, que perdeu seu filho. São elementos que já nos mostram que as transformações que os personagens vão seguir ao longo da trama serão críveis, que eles são mais complexos do que parecem em sua superfície. Além disso, são personagens espelhos um do outro. Ambos carregam uma frustração e remorsos por situações do passado, que estavam além de seus controles, e que os endureceu assim como endureceu suas relações sociais.
Essa dinâmica e jornada pela qual ambos os personagens passam seguem caminhos um tanto inesperados e até levando um certo tempo para que a história assuma para a gente que esse será o grande conflito. Para mim, a narrativa busca nos introduzir em todo aquele ambiente, mostrar pouco a pouco dos personagens até finalmente colocar um contra o outro e ao lado do outro. O que funciona perfeitamente porque aqui nós temos três grandes interpretações, obviamente, Paul Giamatti é o maior destaque. Ele conduz a narrativa, multifacetando seu personagem em uma interpretação que sabe conduzir a amargura, empatia e a comédia de seu personagem, que é extremamente sutil. É um dos melhores trabalhos de Giamatti e com certeza o tipo de interpretação que será lembrada por muito tempo. Dominic Sessa que interpreta Angus tem uma dinâmica e química com Paul excelente, é a força do filme. Seu lado dramático impressiona ainda mais levando em conta que esse é o primeiro trabalho de destaque desse jovem ator. Ainda que o filme, como dito, busque se apoiar na dinâmica desses personagens e suas transformações, não seria a mesma coisa sem sua coadjuvante, Mary interpretada de forma brilhante por Da’Vine Joy Randolph, o contexto que a personagem vive já é de um potencial dramático tremendo. Ela perdeu seu filho há um tempo e parece ter passado pelo processo do luto, mas pouco a pouco vemos como a ferida ainda está aberta e como essa fragilidade é capturada ao mesmo tempo que Mary é a voz da razão para Paul, é espetacular. A interpretação de Da’Vine está de igual para igual com Giamatti, e na minha opinião, também será algo para se lembrar por muito tempo.
Eu comecei meu raciocínio citando Hemingway e agora irei citar Charles Dickens porque desde o Conto de Natal, a famosa história sobre o mesquinho Ebenezer Scrooge sendo visitado por três fantasmas, a data está cravada no imaginário popular como um período de transformação e redenção. Algo que, obviamente, descende das origens desse feriado, mas que foi reforçado por Dickens e influenciou o cinema americano. “Os Rejeitados” também é sobre redenção, mas uma mais próxima da realidade. Sim, o filme está e parece feito nos anos 70, mas os dramas que cada personagem vive nos soam tão atemporais e universais quanto. E embora o filme acabe se estendendo um pouco mais em seus momentos finais, o que, na minha opinião, atrapalha sua catarse dramática, ele entrega uma conclusão agridoce só que extremamente realista. Nossas redenções pessoais nem sempre terminam em um final feliz e em uma grande apoteose, às vezes terminam com consequências amargas, mas o que importa é que nos tornamos seres humanos melhores e estamos bem com quem somos.
E assim surge um novo clássico natalino.
Crítica/Review
Os Rejeitados
Em "Os Rejeitados", a melancolia que nos envolve pode ser engraçada e atraente, e a redenção nem sempre virá com consequências doces e coloridas.